As classes começarão em agosto; planos incluem ainda aulas adaptadas para pessoas com deficiências físicas e auditivas
 
POR THALITA PESSOA
 
Em família. Torben Grael, Axel Grael e Christa Grael, mulher de Axel e gerente executiva – Custódio Coimbra / Agência O Globo
 
NITERÓI — Há mais de 20 anos, a conquista do ouro olímpico dava espaço a uma ambição ainda maior: depois que Torben Grael cruzou a linha de chegada em Savannah, cidade a 400 quilômetros de Atlanta, cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 1996, o sonho passou a ser o de democratizar o acesso aos esportes náuticos. Ao lado dos irmãos Lars Grael, que acabara de conquistar a medalha de bronze na vela na classe Tornado na cidade americana, e Axel Grael, ambientalista e hoje vice-prefeito de Niterói, o velejador campeão da classe Star fundou, em 1998, o Projeto Grael, ONG que este ano completa duas décadas, ao longo das quais já atendeu 16 mil alunos. Seu objetivo, desde a criação, é facilitar o acesso de crianças e adolescentes da rede pública de ensino à vela, desenvolvendo muito mais do que as técnicas esportivas.
 
O aniversário tem como data oficial 19 de agosto, mês em que, segundo Christa Grael, mulher de Axel Grael e gerente executiva da ONG, o projeto passará a oferecer atividades de canoagem e remo.
— Queremos expandir a agenda do projeto. Aqui os alunos aprendem a nadar, a fazer a manutenção dos barcos. O intuito é dar oportunidades. Em 2006, levamos um grupo de dez alunos para Nova York; só um deles, até então, tinha saído de Niterói — recorda.
 
Também está nos planos da família, mas ainda sem data prevista, a oferta de aulas adaptadas para pessoas com deficiências físicas e auditivas.
 
— Até por conta da deficiência do Lars (que teve a perna direita amputada em 1998 ao ser atingido por uma lancha), gostaríamos de tornar a escolinha mais inclusiva — diz Axel.
 
Antes de tudo isso, da próxima segunda-feira até o dia 27, será realizado o seminário “Barcos como instrumento de educação”, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Palestras, oficinas e aulas teóricas e práticas de vela, canoagem e remo serão oferecidas na sede da ONG, em Jurujuba. O público-alvo do evento, inteiramente gratuito, são estudantes e professores de educação física, professores de modalidades náuticas e líderes comunitários, além dos demais interessados.
 
Esporte fora dos iate clubes
 
A ideia dos irmãos Grael sempre foi promover e fortalecer a educação dos alunos por meio do tripé formação esportiva, qualificação profissional e educação ambiental.
 
— Queríamos tornar os esportes náuticos abertos a todos, oferecê-los fora do ambiente dos clubes, que são o ambiente natural deles, mas que acabam criando uma barreira. A ideia era repetir a experiência da França e da Nova Zelândia, onde a base da vela é fora dos clubes, acontece nas marinas — conta Torben Grael, que acredita que o nome da família e a seriedade do trabalho desenvolvido tenham garantido a longevidade do projeto, hoje com 12 patrocinadores.
 
São atendidos ali jovens de 9 a 29 anos que têm a liberdade de escolher seu tempo de permanência nos cursos. A evasão, no entanto, é baixa e geralmente acontece por mudança de endereço. O que não os impede de, tempos depois, voltarem a procurar o projeto para completar a formação. Afinal, os cursos profissionalizantes ali oferecidos têm alto grau de empregabilidade.
 
— Os barcos não sobrevivem só de donos; precisam de tripulação. Além disso, as empresas do ramo náutico nos procuram e nos pedem indicações. É bom para o aluno e bom para a empresa, que recebe alguém que já tem referências — argumenta Torben.
 
Mas nem mesmo a fama do projeto o blindou de críticas, lembra ele:
 
— Nós sofremos muitas críticas porque achavam que criaríamos nos meninos expectativas (de entrar) num esporte de elite que eles não conseguiriam alcançar; que nós iríamos mais frustrá-los do que ajudá-los. Havia muito preconceito, e tivemos de superar esse olhar até para conquistar o primeiro patrocinador.
 
Graças à iniciativa, além de prêmios, hoje a família coleciona uma série de cartas de agradecimento, algumas até adornam as paredes da escola. Entre os agradecidos está Alex Sandro Matos de Carvalho, de 28 anos. Hoje instrutor de vela, ele vive das aulas e do aluguel de veleiros. Em 2014, ao lado de outros ex-alunos do projeto, ele conquistou o Campeonato Brasileiro de Ranger 22, numa resposta à altura às provocações ouvidas durante a competição.
 
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— Faltando uma regata para o fim do campeonato, os competidores zombavam da gente. Quando estava em segundo lugar, a um ponto do primeiro colocado, ouvi que era um idiota sortudo, que eu não sabia o que estava fazendo. Isso só me deu maior vontade de ganhar, e foi o que aconteceu — relembra ele.
 
Entre os feitos de Alex Sandro está também o de ter vencido a regata oceânica Cape Town-Rio em 2011, depois de 17 dias em alto-mar, e de ter cumprido o prognóstico de seu pai já falecido.
 
— Minha mãe sempre dizia que meu pai falava que eu seria o chefe da família. Eu tinha essa meta de ser diferente dos meus dois irmãos mais velhos, que não completaram os estudos. Foi no projeto que comecei a me soltar, que descobri a disciplina, que descobri uma nova vida. Graças ao projeto, fui reeducado — conclui.
 
Laís Carvalho, hoje com 27 anos, trabalha há dez no projeto, do qual é ex-aluna. Pelo conhecimento suscitado ali, cursou faculdade. E não parou. Hoje com MBA em Gestão de Pessoas, ela, que é assessora de recursos humanos, tem interesse em estudar temas que possam agregar valor ao cargo:
 
— Eu já era de Jurujuba e decidi me inscrever. Fiz natação e cursos profissionalizantes. Em 2009, fui convidada a cobrir licença-maternidade na secretaria e decidi aceitar. Foi quando eu descobri a minha paixão pelo terceiro setor. Comecei a cursar Ciências Sociais na UFF, foi bem difícil, mas consegui. Minha mãe não tem o ensino fundamental, e meu pai não tem estudo.
 
Certeza do dever cumprido
 
Para Lars Grael, são histórias como a de Laís que dão a certeza do dever cumprido:
 
— Nós não tínhamos expectativas. Queríamos fazer uma escolinha de vela fora das barreiras dos iates clubes. Era inédito um trabalho de inclusão social através da vela. Aprendemos que, mais do que formar atletas, temos que formar cidadãos. Esse foi um aprendizado. Outro foi o de ser independente do poder público e da agenda política eleitoral. Hoje temos ex-alunos que são comandantes das Barcas, de lanchas de luxo, juiz de vela internacional e oficiais da Marinha, entre os exemplos.
 
Além disso, a educação ambiental é trabalhada de maneira transversal nas palestras e aulas do projeto. Por meio da compreensão das correntes e ventos, entre outros ensinamentos, os alunos passam a ter uma outra relação com a natureza e se tornam agentes multiplicadores desse conhecimento.