‘Ela ficou encantada quando ouviu o barulho do próprio xixi’, conta a mãe de Júlia, de 3 anos, que passou por procedimento em Bauru. Centrinho é referência na reabilitação de surdos; inclusão deles ganhou repercussão como tema da redação do Enem.
 
Por Mariana Bonora e Tiago de Moraes, G1 Bauru e Marília
 
Com implante coclear, a pequena Júlia pode desenvolver a audição e, por consequência, a fala (Foto: Kátia Fugiwara de Oliveira/Arquivo pessoal )
Com implante coclear, a pequena Júlia pode desenvolver a audição e, por consequência, a fala (Foto: Kátia Fugiwara de Oliveira/Arquivo pessoal )
 
Nesta sexta-feira (10) é comemorado o Dia de Prevenção e Combate à Surdez. A data reforça a importância das formas de reabilitação das pessoas que nasceram surdas ou perderam a audição por algum motivo.
 
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Em Bauru (SP), o Hospital de Reabilitação de Anomalias Crânio-faciais da USP, conhecido como Centrinho, desenvolve um trabalho que é referência na reabilitação dos surdos por meio de implantes, dando possibilidade dessas pessoas desenvolverem a audição. Foi um desses implantes que mudou a vida da pequena Júlia Bezerra, de apenas 3 anos.
 
Com implante coclear bilateral, a menina ouve normalmente e está desenvolvendo a fala. Para isso ela é acompanhada diariamente pela equipe multidisciplinar do Serviço de Educação e Terapia Ocupacional do Centrinho.
 
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Com implante feito em hospital de Bauru, menina surda começa a ouvir e desenvolve a fala
 
A bióloga e mãe da Júlia, Claudeany Bezerra Pereira, conta que a menina nasceu prematura e ficou 11 dias na UTI. Exames apontaram que a bebê tinha uma cardiopatia chamada de Comunicação Interatrial (CIA), conhecida como sopro no coração, que causa uma espécie de buraco no órgão onde os sangues venoso e arterial se misturam, provocando aumento no fluxo de sangue que vai para o pulmão.
 
“Nós ficamos focados nesse problema e não fizemos os testes como o da orelhinha, do olhinho. Só quando a Júlia tinha um ano que nós percebemos que havia algo errado. Ela falava muito pouco, umas três palavras como ‘mamãe, papai e não’, além de gesticular muito. A gente via que ela se esforçava e não conseguia falar”, conta Claudeany.
 
Depois de vários exames, Júlia foi diagnosticada com perda auditiva severa nos dois ouvidos e a família, que é do Pará, iniciou uma peregrinação em busca de tratamento. Eles descobriram que a esperança da menina ouvir estava no implante coclear, conhecido como ouvido biônico, no qual o Centrinho é pioneiro.
 
Após a viagem de quase 3 mil quilômetros, a Júlia fez o primeiro implante coclear com 2 anos. A equipe de reportagem da TV TEM acompanhou a ativação do implante no ano passado, que permitiu que ela ouvisse a voz da mãe pela primeira vez. E a partir daí cada som foi uma nova descoberta, segundo a mãe.
 
“É engraçado, mas o som que eu acho que foi marcante para ela foi ouvir o xixi dela. Ela ficou encantada com o barulho, ela sabia o que era fazer xixi, mas ela nunca tinha ouvido o barulho. Então ela ficou me chamando e apontando a orelha, como se tivesse falando ‘você está ouvindo mamãe, o barulho que eu faço’”, lembra Claudeany.
 
O som da chuva também foi um dos que despertaram a emoção na mãe pela reação da menina. “A gente mostrava a chuva para ela, colocava a mãozinha dela para ela sentir, mas ela não conseguia ouvir o barulho. O dia que ela ouviu a chuva foi muito emocionante, ela ficou no jardim de inverno observando e me chamando para ouvir também.”
 
Júlia fez a cirurgia do implante com 2 anos no Centrinho de Bauru (Foto: Claudeany Bezerra Pereira / Arquivo pessoal )
Júlia fez a cirurgia do implante com 2 anos no Centrinho de Bauru (Foto: Claudeany Bezerra Pereira / Arquivo pessoal )
 
Ouvido eletrônico
 
O implante coclear é um dispositivo auditivo eletrônico e é inserido por meio de uma cirurgia, dentro de uma parte interna do ouvido, que recebe o nome cóclea, e exerce a função das células possibilitando a percepção dos sons pelo paciente.
 
“Quando o paciente tem uma perda profunda na audição, o aparelho convencional não é suficiente para dar aquisição de linguagem por isso a reabilitação é com implante coclear, no qual nós somos pioneiros. Para as crianças que nascem surdas ou com perda profunda é importante que façam o implante coclear até os 2, 3 anos”, explica Luiz Fernando Lourençone, médico do Centrinho.
 
“O trabalho visa à reabilitação da criança depois do implante, porque não basta só colocar o implante e ir para casa, a criança precisa do acompanhamento dessa equipe multidisciplinar para aprender a ouvir e identificar cada som novo. E tudo isso precisa estar integrado com a família e também a escola, e nesse aspecto que a gente procura contribuir”, explica a chefe do serviço, Márcia Fernandes Morais.
 
E assim, cada novo som identificado pela Júlia é uma vitória. “Não é tanto o primeiro som que ela ouviu, mas as coisas do dia a dia, cada novo som é um motivo de festa, parece uma coisa simples para gente que sempre ouvir, mas para a Júlia e para mim como mãe não é”, diz Claudeany.
 
Júlia é acompanhada pela equipe multidisciplinar do Serviço de Educação eTerapia Ocupacional (Foto: Tiago de Moraes/G1 )
Júlia é acompanhada pela equipe multidisciplinar do Serviço de Educação eTerapia Ocupacional (Foto: Tiago de Moraes/G1 )
 
Ajudando a ouvir
 
O Centrinho realiza por mês cerca de 400 adaptações de aparelhos de amplificação sonora individual, que são aqueles aparelhos mais comuns para perdas auditivas leves e moderadas. De implantes cocleares como o da Júlia, implantados de forma cirúrgica, são de 8 a 10 mensais. Além das próteses ancoradas no osso, para aqueles pacientes que têm alguma mal formação na orelha, sendo feito dois implantes como esse por mês em média.
 
A auxiliar de escritório Itamara Caroline da Silva passou por esse procedimento no Centrinho no ano passado. A jovem de 26 anos nasceu com a síndrome de Treacher Collins que causa mal formação na face, afetando a audição, a fala e a respiração. Por causa da síndrome, Itamara não tem as orelhas e antes da prótese, utilizava um aparelho de amplificação sonora que permitiu que ela conseguisse identificar os sons ao redor dela.
 
“Eu costumo dizer que eu comecei a viver de verdade com 20 anos, porque foi quando eu ganhei o aparelho auditivo. Lembro até hoje do dia que ele foi ativado veio aquela explosão de sons e no meio de tudo isso eu consegui identificar o som de um passarinho, foi muito emocionante, me senti livre”, lembra.
 
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Jovem que nasceu sem orelhas por causa de síndrome consegue ouvir após implante
 
Ela conta que a adaptação não foi fácil. Pelo fato dela não ter as orelhas, o aparelho era utilizado com um arco que muitas vezes pressionava a cabeça e oxidava com frequência, além dos ruídos. Mas a vontade de ouvir era mais forte e o aparelho possibilitou que se comunicasse muito melhor e que se aproximasse das pessoas.
 
“Antes eu tinha muita vergonha até de conversar com a minha família, com medo de não entender o que eles falavam. Hoje eu sou uma pessoa muito mais feliz.”
 
Antes do uso do aparelho, ainda adolescente, Itamara passou por uma cirurgia para implante de orelhas que não deu certo. “Foi uma grande decepção porque além de querer escutar, eu tinha um sonho de ter orelha para poder colocar o cabelo atrás dela, era uma coisa simples, mas eu achava muito bonito e queria poder fazer isso.”
 
Com a prótese ancorada no osso, procedimento realizado no Centrinho em Bauru, Itamara consegue ouvir com mais clareza (Foto: Itamara Caroline da Silva / Arquivo pessoal )
Com a prótese ancorada no osso, procedimento realizado no Centrinho em Bauru, Itamara consegue ouvir com mais clareza (Foto: Itamara Caroline da Silva / Arquivo pessoal )
 
Já com a prótese óssea, a adaptação foi muito mais fácil. Nesse caso um pino implantado por meio de cirurgia na cabeça próximo ao local onde seriam as orelhas e com um transmissor, que fica acoplado na parte externa, a pessoa consegue ouvir com mais clareza.
 
“A adaptação foi muito fácil, nem percebo a prótese na minha cabeça e consigo entender perfeitamente o que as pessoas falam, não tenho mais medo de me aproximar delas, conversar, sou muito mais independente. Só preciso superar o medo de falar ao telefone”, conta.
 
Sistema FM
 
A reabilitação das pessoas surdas teve um ganho com o sistema FM que pode ser utilizado por pessoas que usam tanto os aparelhos amplificados como os que são implantados, seja o coclear ou prótese óssea ancorada.
 
A eficácia dele, especialmente em termos da inclusão na educação, foi comprovada em pesquisa realizada pela Faculdade de Odontologia da USP (FOB).
 
Em 2013, uma portaria do Mistério da Educação estabeleceu fornecimento gratuito pelo SUS dos componentes que permitem o uso desse sistema para estudantes de 5 a 17 anos.
 
O sistema possui dois componentes – um de transmissão, uma espécie de microfone que fica com o professor na sala de aula, por exemplo, e transmite a fala em frequência modulada para o outro componente que é o receptor acoplado no aparelho amplificador ou nos implantes. Segundo a fonoaudióloga da seção de implante coclear do Centrinho, Liége Franzini Tanamati, o sistema diminui os ruídos e facilita a aprendizagem.
 
“Por mais moderno que seja o dispositivo do implante, só ele não resolve todas a questão dos ruídos, especialmente em sala de aula, e o sistema consegue melhorar isso. Para a criança que está em processo de linguagem e tem dificuldade de ouvir o que professor está falando é um ganho muito importante.”
 
Moséis começou a tocar violino com 7 anos e o uso do aparelho amplificador sonoro e do sistema FM facilitaram a aprendizagem tanto na escola como na música (Foto: Marta Amancio / Arquivo pessoal )
Moséis começou a tocar violino com 7 anos e o uso do aparelho amplificador sonoro e do sistema FM facilitaram a aprendizagem tanto na escola como na música (Foto: Marta Amancio / Arquivo pessoal )
 
O estudante Moisés Amancio da Silva de 19 anos utiliza o sistema no aparelho amplificador sonoro, que ele usa desde os 14 anos, e conta que foi muito importante para o aprendizado dele, inclusive na música.
 
Moisés toca violino desde 7 anos, e a perda auditiva profunda no ouvido direito e moderada no esquerdo, descoberta somente quando ele tinha 4 anos, não impediu que ele se desenvolvesse como músico. 
 
“Na verdade acho que a música até foi um estímulo para aprimorar a audição e com o aparelho e o sistema FM tudo ficou bem melhor no meu dia a dia, eu passei a ouvir bem melhor o professor, facilitou muito meus estudos. Recentemente eu estava tirando carta de motorista e durante as aulas teóricas o professor usou o sistema e isso facilitou muito também”, conta o jovem que recentemente passou em um processo seletivo em primeiro lugar para curso de logística.
 
A inclusão desse público, em especial na educação, também  ganhou destaque ao ser tema da redação do Enem deste ano.
 
Fonte: g1.globo.com