Cães que há pelo menos um ano estavam com as patas traseiras paralisadas recuperaram parte dos movimentos depois que tiveram células-tronco transplantadas diretamente para suas medulas espinhais

jasper cambridge cao may e peter hay

Até pouco tempo atrás, Jasper não conseguia mover as patas traseiras devido a uma lesão na medula espinhal. Ele conseguiu recuperar os movimentos após o transplante (May e Peter Hay/VEJA)

Jasper, 10 anos, é um pequeno cachorro da raça dachshund que vive com um casal na cidade de Cambridge, Inglaterra. Há anos com as patas traseiras paralisadas devido a uma lesão na medula espinhal, o cãozinho recuperou os movimentos após um transplante de células-tronco nasais no tecido da medula danificado. Jasper faz parte de um grupo de cachorros que participou do primeiro teste que conseguiu recuperar uma lesão “real” de medula em um animal — e não uma lesão causada em laboratório. Os resultados foram publicados na edição deste mês da revista científica Brain.As células transplantadas foram obtidas do bulbo olfativo (um par de pequenas estruturas situadas na parte mais posterior do cérebro que recebem informações de moléculas de odor captadas por receptores no nariz)dos próprios animais.Realizado a partir de uma parceria do Centro de Medicina Regenerativa do Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido, e da Escola de Veterinária da Universidade de Cambridge, o estudo transplantou para as áreas danificadas da medula um tipo de célula nasal já conhecida por sua capacidade de restaurar partes de células nervosas. “Havia a hipótese segundo a qual essa célula-tronco (do bulbo olfativo) poderia servir como um eficaz conduíte para regenerar axônios nas zonas de transição entre tecidos avariados e intactos da medula espinhal”, escreve o professor James Guest, do Departamento de Cirurgia Neurológica da Escola de Medicina Miller, da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, em um comentário sobre a pesquisa, também publicado na Brain.
O pequeno Jasper fez parte de um grupo de 34 cães, todos com algum tipo de paralisia há pelo menos um ano, causada por danos severos à medula espinhal – nenhum deles conseguia mexer as patas traseiras. Metade da amostra, entre os quais Jasper, recebeu o transplante das células, removidas do bulbo olfativos e depois cultivadas em laboratório. Nos meses subsequentes, eles tiveram os avanços de coordenação motora monitorados em esteiras com o suporte de arreios.
O vídeo abaixo mostra Jasper antes do transplante de células e seis meses depois:
Cautela — De acordo com a Universidade de Cambridge, os cachorros que foram submetidos ao transplante apresentaram avanços consideráveis em relação ao grupo de controle. Eles conseguiram mover as patas antes inutilizadas e passaram a coordenar os movimentos com os membros anteriores.
Um dos autores do artigo publicado na Brain, Robin Franklin, da Universidade de Cambridge, afirmou que “os resultados são extremamente empolgantes porque revelam pela primeira vez que implantar esse tipo de célula numa medula espinhal severamente danificada pode trazer uma melhora significativa.”
Em relação à aplicação humana, ele avalia que a técnica pode recuperar “pelo menos um pouco do movimento” prejudicado. “Estamos ainda longe de afirmar que podemos recuperar todas as funções perdidas. É mais provável que esse procedimento possa um dia ser usado como parte de uma combinação de tratamentos, ao lado de medicações e fisioterapias. Nós estamos confiantes que, no futuro, a técnica possa recuperar ao menos parte dos movimentos em humanos.”

Para a professora Mayana Zatz, do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do site de VEJA, a pesquisa traz resultados otimistas, mas é preciso cautela porque, como os próprios autores do estudo reconhecem, as novas conexões nervosas só tiveram alcance em regiões próximas do traumatismo na medula espinhal. “A pesquisa mostra um caminho, mas é preciso cautela.” 

Os pesquisadores ressalvam, por exemplo, que pessoas que sofrem com lesões na medula espinhal avaliam que a recuperação de funções sexuais e fisiológicas como mais importantes do que a mobilidade. Nesse sentido, nenhum resultado significativo na recuperação do controle do intestino e da bexiga foi observado no estudo.

Opinião das especialistas

Mayana Zatz

Geneticista do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do site de VEJA.


Temos que ter um otimismo cauteloso. O estudo é positivo porque os pesquisadores analisaram uma população heterogênea e que havia sido lesionada há pelo menos um ano, algo que não aconteceu com os outros experimentos em laboratório.

Como resultado, houve a melhora da coordenação entre as patas traseiras e as dianteiras e aparentemente também na sensibilidade das ligações de curta distância na medula.

No entanto, é preciso enfatizar que os próprios autores reconheceram que essa técnica, por si só, não poderá ser considerada como único tratamento em humanos. Eles viram que as novas conexões nervosas só tiveram alcance em regiões próximas da lesão na medula espinhal. Por isso, não foram observadas melhoras em funções que são consideradas pelos pacientes como mais críticas do que a própria recuperação da mobilidade, como funções sexuais e problemas de incontinência urinária.

Também toda dinâmica de equilíbrio e mobilidades em cachorros é diferente, o que sugere que os resultados em humanos podem não ser os mesmos.

A pesquisa mostra um caminho, mas é preciso cautela.


Lygia da Veiga Pereira

Professora Titular e Chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da Universidade de São Paulo – Instituto de Biociências.


O artigo científico original onde o estudo é relatado foi acompanhado de um editorial da revista comentando o trabalho que, para minha surpresa, citava várias limitações da pesquisa, incluindo a falta de informações precisas sobre o estado clínico dos animais envolvidos no estudo e sobre a população de células injetadas.

Segundo o artigo, trinta cachorros participaram da pesquisa — todos eram animais de estimação com lesão de medula espinhal de graus variáveis. Vinte foram tratados com as células retiradas do próprio bulbo olfativo, e dez receberam injeção de placebo. Só para esclarecer, as células do bulbo olfativo são células do sistema nervoso, que ajudam neurônios olfativos a se estender até o sistema nervoso central, transmitindo a informação de odores.  A ideia é que elas possam também ajudar os neurônios lesionados da medula a se regenerarem, e muitos grupos trabalham nisso já há alguns anos, mas com resultados ainda limitados.

Pois bem, comparando os animais tratados com aqueles que receberam o placebo, os pesquisadores mostraram que havia uma melhora significativa da coordenação entre patas traseiras e dianteiras naqueles que receberam as células. Porém, quando mediram outros parâmetros como controle da bexiga, estabilidade lateral e transmissão de impulsos elétricos entre o cérebro e as patas, não houve diferença estatística significativa entre os animais que receberam as células e os que receberam o placebo.

Ou seja, na melhor das hipóteses, o tratamento com as células olfativas só melhorou o único parâmetro irrelevante para nós humanos que andamos só com as “patas” traseiras — não precisamos coordená-las com as dianteiras. No mais, nem o controle da bexiga aumentou, o que já seria uma grande melhora da qualidade de vida dos lesionados.