Resultado de imagem para ame atrofia muscular espinhalQuando a Administração para Alimentos e Drogas dos EUA (FDA, na sigla em inglês) aprovou o primeiro medicamento para pessoas com atrofia muscular espinhal (AME) há um ano, os médicos finalmente tinham esperanças de melhorar a qualidade de vida de pacientes com esta rara e debilitante doença.

Mas o custo extraordinário do tratamento e a complicada logística para seu fornecimento são barreiras para muitos, apontam especialistas em bioética da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, também nos EUA, que se reuniram com colegas de outras instituições para discutir suas preocupações sobre a terapia em artigo publicado nesta segunda-feira no periódico científico “JAMA Pediatrics”.

Segundo os especialistas, o maior problema com o novo tratamento, batizado nusinersen, é realmente seu alto custo, de US$ 125 mil (mais de R$ 400 mil) por dose, o que restringe o acesso dos pacientes no longo prazo e a possibilidade dos médicos de receitá-lo.

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– Não creio que alguém veja as evidências que temos até agora e pense que é um má ideia usar a medicação como uma opção para os pacientes – diz Alyssa Burgart, diretora de ética clínica do Hospital Infantil Lucile Packard da Universidade de Stanford e professora da Escola de Medicina da instituição. – Mas o custo de fato acaba sendo um fator limitador significativo.

Outras preocupações, acrescenta Alyssa, incluem a falta de protocolos para a alocação e administração justa da droga, incertezas sobre seus benefícios no longo prazo e os riscos do tratamento. Ela, porém, considera que esta é uma época interessante no tratamento da AME e que o medicamento “mudou o jogo” para as famílias das vítimas.

A atrofia muscular espinhal é uma rara doença genética que interfere na capacidade do corpo de produzir uma proteína essencial para a sobrevivência dos neurônios motores. Sem ela, estes neurônios morrem e os pacientes vão perdendo o controle e força musculares, eventualmente ficando incapacitados de se moverem, engolirem ou mesmo respirarem, acabando por morrer. Diagnosticada em bebês entre o nascimento e os seis meses de idade, a AME do tipo 1 (AME-1) é a forma mais comum do mal, atingindo 60% das vítimas, que geralmente morrem antes de completarem os dois anos de idade.

– (O nusinersen) não é uma cura, mas é um enorme passo, e é odioso que a etiqueta de preço seja a razão para uma família ser novamente devastada, como se a devastação do diagnóstico já não fosse suficiente – critica Alyssa.

O nusinersen, que é injetado na espinha e funciona ao permitir que os pacientes de AME temporariamente produzam uma maior quantidade da proteína para sobrevivência dos neurônios motores, é uma das drogas mais caras existentes no mercado atualmente. São necessárias seis injeções no primeiro ano de tratamento, a um custo de US$ 750 mil (quase R$ 2,5 milhões) nos EUA, seguidas de três injeções anuais para “manutenção”, a um preço de US$ 375 mil (cerca de R$ 1,2 milhão) anuais.

Algumas seguradoras americanas cobrem o tratamento, mas os critérios não são uniformes, e também não está claro por quanto tempo elas pagarão o tratamento de um paciente em particular. Segundo Alyssa, médicos nos EUA encontraram casos em que as seguradoras só cobrem o tratamento para o mais novo de dois irmãos pois a criança mais velha já apresenta mais debilidades, e assim não se encaixam no critério de vítimas de uma desordem progressiva.

– Não sei como é ser um desses pais e ter a alegria da oportunidade de mudar a vida de um de seus filhos e não para a outra criança um pouco mais velha. Acho isso muito cruel – diz a especialista.

Antes da aprovação do nusinersen pela FDA, que é comercializado pelos fabricantes Biogen e Ionis Pharmaceuticals sob o nome Spinraza, as únicas opções de tratamento eram paliativas, incluindo fisioterapia, ventilação artificial e outros aparelhos de assistência. Mas embora a maioria dos pacientes com AME-1 morra antes dos dois anos, grande parte das vítimas de outros tipos da doença que aparecem mais tarde vivem muito mais.

O tratamento rápido com o nusinersen, no entanto, é considerado crucial para interromper a degeneração muscular, especialmente nos bebês muito novos, destaca Alyssa. Um ensaio clínico do tipo cego feito nos EUA envolvendo 121 pacientes com AME-1 mostrou que os bebês que receberam o medicamento apresentaram uma melhora significativa de sua função motora quando comprados com os que não receberam a medicação. Estes resultados foram bons o bastante para a FDA suspender o ensaio clínico antes do esperado, em agosto de 2016, e ampliar o acesso ao tratamento a todos pacientes com AME-1.

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A aprovação rápida, porém, deixou os centros médicos atarantados na pressa para estabelecer programas de tratamento, que se tornaram ainda mais urgentes depois da liberação da droga para pacientes com todos tipos de AME a partir de dezembro de 2016, relata Alyssa.

Mas mesmo antes da aprovação do nusinersen pela FDA, as equipes de pesquisas neuromusculares e ética biomédica da Universidade de Stanford, incluindo o neurologista pediátrico e especialista em AME John Day, já colaboravam com colegas em todo país para entender os desafios práticos e éticos da administração do tratamento.

Entre as questões levantadas estavam, por exemplo: quais os requisitos para estabelecer programas de tratamento de AME de alto padrão? Quantos pacientes cada clínica pode aceitar? Quantos programas são necessários? Quem administrará as filas de espera? Quais serão os podrões, como os níveis de progressão da doença, para decidir quem receberá o tratamento? A melhoria da função motora dos pacientes é a única medida de sucesso ou também a manutenção das suas capacidades?

– Para alguns destes pacientes, se tudo que lhes resta, por exemplo, é a capacidade de mexer um dedo, ou mexer no seu equipamento de suporte, ou se ainda tem a capacidade de levantar uma sobrancelha para se comunicar, como posso dizer que manter isso não compensa tanto quanto tratar um bebê para evitar que tenha mais uma incapacitação? – cita Alyssa.

Segundo a especialista, isso é particularmente difícil com a AME porque os pacientes não apresentam perdas cognitivas. Seus corpos estão falhando, mas suas mentes ainda funcionam muito bem.

Por fim, os custos do tratamento são uma sombra não apenas sobre os pacientes e suas famílias, mas também para as instituições que o fornecem, com suas missões e valores tendo que ser levados em conta a cada decisão.

– Se seu interesse é lucrar, você pode escolher seus pacientes e só tratar os que têm alguns tipos específicos de seguro, em que você recebe grandes reembolsos e pode ganhar muito dinheiro – diz Alyssa. – Mas se sua missão é dar o melhor tratamento possível a seus pacientes, então o lucro não chega nem perto de ser o objetivo principal. Mas se você simplesmente tratar todo mundo, sem levar em conta suas particularidades, e não planejar o futuro, você pode levar seu hospital à falência, e aí não tratar mais ninguém. E esta certamente não é a missão de um hospital pediátrico.

David Magnus, diretor do Centro de Ética Biomédica da Universidade de Stanford e professor da instituição, lembra que estas preocupações vão além do tratamento dos pacientes de AME, que representam um grupo relativamente pequeno de pessoas, já que é dura a competição pelos recursos para tratar pacientes com várias doenças para as quais estão surgindo novos, e caros, tratamentos. E isso força os hospitais a tomarem decisões difíceis.

– Estas questões estão presentes nos hospitais todos os dias porque os recursos são finitos – explica ele, coautor do artigo no “JAMA Pediatrics”. – Os leitos são escassos, os equipamentos, salas de cirurgia, recursos para pesquisas são todos escassos. Então, o que você vai decidir não fazer?

E embora haja alguma ajuda financeira a pacientes por meio de um programa da Biogen chamado SMA360 (referência à sigla para a doença em inglês, SMA), que cobre os custos para alguns deles, um alívio maior pode vir à medida que novos tratamentos, e a entrada no mercado de competidores ao nusinersen, surjam, diz Alyssa. Vários outros tratamentos para AME estão em ensaios clínicos, e a comunidade médica e de pacientes acompanha com interesse terapias genéticas de uma única dose. Mas, se aprovadas, essas terapias também terão suas próprias implicações éticas de uso e custo.

Por fim, os autores do artigo destacam a necessidade de uma comunicação clara entre todos envolvidos sobre as questões levantadas pelo novo tratamento, especialmente que os pacientes sejam informados de riscos ainda desconhecidos. Por enquanto, porém, pesquisadores e clínicos vão continuar a compartilhar informações para ajudar em futuras decisões, incluindo protocolos sobre até onde ir com o tratamento.

– Se (o protocolo) for muito liberal, você acabará tratando pacientes que não vão se beneficiar, e eles vão incorrer em um maior risco – diz Alyssa. – Mas se (o protocolo) for muito restrito, nunca saberemos o que poderemos alcançar. Creio que a única solução é tratar da forma mais ampla possível, continuar a amealhar dados e realmente continuar a observar tudo de forma detalhada e pensada de uma maneira a ajudar os pacientes ao máximo.

Source: Novo tratamento para atrofia muscular espinhal levanta questões éticas – Jornal O Globo