Projeto voluntário criado por Cacá Dominiquini, de Campinas (SP), exalta o que parte da sociedade ignora: “As pessoas não falam desse assunto. Parece que essas mulheres não existem.”


Por Fernando Evans, G1 Campinas e região

Projeto InspirAção valoriza a força, determinação e beleza de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

Projeto InspirAção valoriza a força, determinação e beleza de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

Aquilo que muitos olhos costumam ignorar, as lentes da fotógrafa Cacá Dominiquini tratam de exaltar. Entre sorrisos e olhares, cicatrizes e próteses que revelam histórias de superação, e não mais de tristeza e dor. Os ensaios destacam a força e a beleza de mulheres amputadas, e inspiram mais deficientes a se valorizar diante da sociedade.

“As pessoas não falam desse assunto [amputação]. Parece que essas mulheres não existem. Com as fotos, quero que elas se sintam bonitas como realmente são”, defende Cacá.

A fotógrafa de Campinas (SP) já clicou 11 mulheres, com diferentes biografias, mas com um denominador comum: a alegria de viver. Ao transformar em realidade um projeto profissional, ela realizou até o sonho de uma menina.

“Foi uma experiência e tanto. Sempre tive vontade de tirar foto, toda maquiada, e a Cacá realizou um dos meus sonhos”, contou a sorridente Duda, de 13 anos, e que aos três teve os pés e mãos amputados.

 

Maria Eduarda, a Duda, de 13 anos, sonha ser modelo (Foto: Cacá Dominiquini)

Maria Eduarda, a Duda, de 13 anos, sonha ser modelo (Foto: Cacá Dominiquini)

Mãe de Duda, Juliana Mota, de 32 anos, conta que a filha precisou retirar os membros “por negligência e falta de diagnóstico médico a tempo” depois de contrair uma bactéria, mas que isso não é impedititivo para a alegria e os sonhos dela. “É superativa, gosta de fotos e de dançar”, avisa.

As duas viajaram de São Paulo para Campinas para encontrar a fotógrafa e o resultado não agradou só a Duda. Juliana ficou orgulhosa do ensaio, e o sorriso da filha, eternizado pelo olhar de Cacá, funciona como uma borracha, que apaga os preconceitos que já enfrentaram.

“Já cheguei a ouvir que a Duda era uma aberração da natureza, e isso dói. Como mãe faço de tudo pra mostrar a beleza e a capacidade da minha filha.”

 

Fotógrafa já clicou 11 mulheres amputadas e quer transformar os ensaios em exposição (Foto: Cacá Dominiquini)

Fotógrafa já clicou 11 mulheres amputadas e quer transformar os ensaios em exposição (Foto: Cacá Dominiquini)

O projeto

A ideia de produzir ensaios com mulheres amputadas mexia com a cabeça de Cacá Dominiquini, de 42 anos, havia algum tempo. No mundo da fotografia desde 2009, ela sonhava realizar um projeto autoral e o InspirAção saiu do status “planejamento” para “realidade” este ano.

O foco em produzir fotos com mulheres amputadas foi definido após ver alguns trabalhos internacionais de publicidade, mas que destacavam outro esteriótipo.

“Eram modelos escolhidas a dedo. Queria fotografar mulheres comuns, para que pudessem se sentir valorizadas com o resultado”, ressalta Cacá, que realiza os ensaios de forma voluntária.

Mas havia um problema: onde encontrar suas modelos? “Nossa, pesquisei na internet e vi que existe um tabu. São poucos que falam sobre o assunto. Encontrei alguns grupos de amputados nas redes sociais e foi assim que começou.”

Júlia Weiss, de 28 anos, perdeu a perna em um acidente de carro quando tinha 19 anos (Foto: Cacá Dominiquini)

Júlia Weiss, de 28 anos, perdeu a perna em um acidente de carro quando tinha 19 anos (Foto: Cacá Dominiquini)

E meses depois de se esforçar para conseguir as primeiras modelos, o trabalho de Cacá ganhou asas com a ajuda da internet e atravessou fronteiras. “Tem uma moça do Uruguai que entrou em contato comigo e quer fotografar. Já recebi também mensagens da China e da Polônia”, conta.

Parte dos ensaios com 11 modelos ilustra a página do projeto nas redes sociais, mas a ideia da fotógrafa é transformar o InspirAção em exposição e, quem sabe, um livro. Algumas das fotos cedidas para a reportagem são inéditas.

‘Pedi para amputar!’

As histórias de superação que Cacá encontrou durante os ensaios são “dignas de um livro”. A modelo Carolinie Araújo, de 21 anos, moradora de Campinas (SP), é um desses casos. Ela nasceu com a Síndrome de Proteus, uma doença rara, sem cura, que mexe com a estrutura óssea.

 

Carolinie Araújo, de 21 anos, conta que fotos levantaram sua autoestima (Foto: Cacá Dominiquini)

Carolinie Araújo, de 21 anos, conta que fotos levantaram sua autoestima (Foto: Cacá Dominiquini)

Ciente da gravidade da doença, pediu aos médicos para amputar parte da perna direita depois de ter passado por 11 cirurgias.

“Não aguentava mais, principalmente sabendo que não ia dar certo. Meu sonho era usar salto alto e não podia. Pedi para amputar! Faz pouco mais de um ano que eu fiz a cirurgia”, narra.

Obstinada, conseguiu usar o salto alto que tanto sonhava. “O médico ficou até surpreso. Com uma semana de prótese já estava usando salto”, conta.

A força de Carolinie, que trabalha e é estudante de nutrição, inspira outras jovens que precisam lidar com a perda de membros. Participar dos ensaios permitiu ampliar esse efeito positivo e elevar a autoestima de outras mulheres.

“Tem muita menina que me procura, que fala que não tem mais vontade de viver, que não acha mais legal a vida depois da amputação, e que se inspiram em mim. É muito legal saber disso.”

 

Alexsandra Rodrigues dá palestras e trabalha a autoestima de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

Alexsandra Rodrigues dá palestras e trabalha a autoestima de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

Força e determinação

O colorido das fotos com Alexsandra Rodrigues, de 43 anos, revelam sua personalidade alegre e inspiradora. Vítima de trombofilia e de um AVC, precisou passar pela amputação de uma dos membros inferiores cinco anos atrás.

Em vez de lamentar, preferiu agir e apoiar outras mulheres que sofreram e sofrem do mesmo problema. “Aprendi a aceitar e seguir minha nova vida. Conheci um mundo diferente, no qual convivo com preconceitos até mesmo de pessoas com deficiência. Mas dou palestras e levo informações e autoestima a outras mulheres”, conta.

Para dar ainda mais voz ao seu “trabalho”, topou participar dos ensaios e mostrar uma força que a maioria das pessoas desconhece.

“A sociedade precisa entender que independente de qualquer tipo de deficiência, somos mulheres e ponto! Precisamos quebrar esse rótulo de que somos coitadas , onde muitas vezes as próprias mulheres acreditam que são.”

 
Criado por fotógrafa de Campinas, Projeto InspirAção valoriza a beleza de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

Criado por fotógrafa de Campinas, Projeto InspirAção valoriza a beleza de mulheres amputadas (Foto: Cacá Dominiquini)

‘Supermodelo’

Natural de Florianópolis (SC), mas morando em Indaiatuba (SP), a jovem Júlia Weiss, de 28 anos, conheceu o trabalho de Cacá pelas redes sociais. “Aceitei participar pela experiência, para conhecer outras meninas amputadas e histórias”, destaca.

Júlia perdeu a perna esquerda em uma acidente de carro, quando tinha 19 anos, mas a amputação não a limitou. Pelo contrário. Formada em educação física, hoje é nadada paralímpica, e compete em provas de 50m, 100m e 400m livre, além de 100m costas.

Participar dos ensaios ajudou a elevar ainda mais a autoestima, garante.

“Até brinquei com a Cacá que estava me sentindo uma supermodelo. A sensação foi muito boa. Eu curti!.”

 

A bailarina Melina Reis, que voltou a dançar após receber uma prótese especial, também posou para as lentes da fotógrafa (Foto: Cacá Dominiquini)

A bailarina Melina Reis, que voltou a dançar após receber uma prótese especial, também posou para as lentes da fotógrafa (Foto: Cacá Dominiquini)

Orgulho

Cacá conta que as sessões de foto atrairam a atenção de muitas pessoas. Como realizou os ensaios em alguns lugares públicos de Campinas, como a Estação Cultura ou o Bosque dos Jequitibás, pode sentir, na companhia das modelos, parte da reação da sociedade. Preferiu ficar com as boas impressões, e não com os “olhares tortos”.

“Algumas pessoas chegaram e ficaram surpresas. Falaram como elas são lindas. As crianças ficaram supercuriosas. Foi um acontecimento”, completou.

 
Cacá Dominiquini e as modelos na Estação Cultura, em Campinas (SP) (Foto: Arquivo pessoal)

Cacá Dominiquini e as modelos na Estação Cultura, em Campinas (SP) (Foto: Arquivo pessoal)

Fonte: Ensaios valorizam força e beleza de mulheres amputadas: ‘Quero que elas se sintam bonitas como são’, diz fotógrafa | Campinas e Região | G1