por Kenya Diehl*
 
Me arrisco em afirmar que quase a totalidade das mães de crianças autistas concentra sua ansiedade em relação aos filhos no que diz respeito à fase adulta. Como será o futuro? Existirá independência? Terá sido válido todo os esforço, as noites sem dormir e uma gama de terapias que consomem tempo, valores altíssimos, distâncias percorridas, sonhos esquecidos?
Assim como há o autista de alto funcionamento (asperger), também temos os casos severos em que há grave comprometimento do desenvolvimento como um todo.
 
Preciso deixar claro que cada autista em sua singularidade tem seus progressos, muitas vezes despercebidos por quem desconhece o transtorno, mas que para pais, mães, irmãos e demais pessoas que convivem é uma verdadeira bênção, como conseguir encontrar a felicidade em um brinquedo sem se estressar, ingerir alimentos com menor seletividade possível, dormir uma noite inteira e se sentir efetivamente feliz com sua morada nesta vida.
 
                         
 
O autista de alto funcionamento, é aquele que tem melhoras significativas conforme o passar dos anos, os tratamentos, as medicações e o empenho e a adaptação da família/escola/terapeutas.
Muitas vezes passamos a idéia de infantilidade, incapacidade, alegria demasiada ou tristeza. Outras vezes parecemos sérios demais, sem um mínimo senso de humor esperado para a piada do momento.
 
Mesmo com déficits importantes em algumas áreas como por exemplo: hiperfoco em detrimento do olhar para o todo, extrema sensibilidade sensorial, excesso de afetividade ou distanciamento de possíveis relacionamentos, o autista de alto funcionamento não raro se destaca em alguma área importante da vida. Não chamo isso de dom, porque qualquer pessoa que se isolar do mundo e escolher uma atividade específica para se dedicar, certamente irá se sobressair naquela atividade muito mais do que pessoas que dedicam sua atenção a diversas áreas da vida.
 
Você, leitor, que me acompanha há mais tempo sabe que tenho duas faculdades cursadas, ambas pela metade. Uma de direito e outra de educação física. Amo as duas áreas, mas o hiperfoco me impediu de concluir as disciplinas das quais eu não conseguia prender atenção de forma alguma.
 
O que observo no meu filho, nos meus amigos aspergers e em mim mesma é que, por um lado somos infantis demais. Há a demora para largar as fraldas, especialmente as noturnas, dificuldade de aprendizagem nos anos iniciais da escola – ainda que a alfabetização aconteça antes mesmo dos seis anos – e o diálogo inocente que uma criança de oito anos é capaz de transmitir com sua simplicidade e sinceridade, enquanto outros garotos já têm a malandragem natural e esperada para a idade.
 
Na fase adulta percebo que, em geral, nos falta uma adequação de comportamento com as pessoas, muitas vezes sendo diretos ao extremo ou nos doando integralmente para pessoas que nem sequer conhecemos, a paixão por desenhos animados, bichos de pelúcia e a carência afetiva.
Por outro lado desde muito pequenos existe uma seriedade ímpar com cada compromisso assumido, a sensação de que o mundo vai acabar se não cumprimos o que prometemos e a rigidez de pensamento que nunca nos permitiu entrar nas brincadeiras infantis que tanto fazem bem às crianças. Desde cedo há a falta de entendimento com crianças da mesma idade, pois é praticamente regra que a criança autista prefira a companhia de adultos porque eles são menos imprevisíveis do que as crianças. Isso dá uma sensação de segurança e bem estar.
 
Desde muito pequena sempre estive cercada de pessoas com mais idade que eu, geralmente adultos, até o ponto de chegar à adolescência e passar a ser a chata que só conversa assuntos sérios, excluída pelos demais que querem curtir a vida e rir uns dos outros. Então aconteceu uma aproximação maior com os professores, funcionários e pais de outras crianças.
Comecei a trabalhar aos quatorze anos, em uma fábrica que montava peças, área de produção, cheiro de cola…
 
                               
                           Aos dezesseis anos com 39kg
 
Eu morava longe do trabalho, em uma garagem improvisada que eu pagava cinquenta reais por mês, tomava duas conduções para chegar, sendo a primeira as 6:30 da manhã. Ia trabalhar, não almoçava porque o almoço era pago em dinheiro e eu precisava do dinheiro para sobreviver, pagar as passagens, o aluguel e os itens básicos de sobrevivência. As 17:45 eu ia a pé para a escola, cursava o oitavo ano do ensino fundamental e esperava a aula começar, cansada, com fome, com frio e sem amigos. No final da aula eu tomava a última condução que era intermunicipal e ia direto para a casa, passava por debaixo da roleta várias vezes por semana porque o dinheiro não chegava para todas as passagens de ida e volta.
Você deve estar se perguntando como eu parava em pé. Bom, nem eu sei como parava em pé e muitas vezes acabava capotando com a cabeça sobre a mesa e sendo motivo de piada para os colegas e decepção para os professores.
 
Assim eu fui, acabei indo parar como estagiária nos Correios e lá ganhei algumas “mães” que se preocupavam comigo e com meus 39 kg em 1,62cm de altura. Ganhei colo, carinho, respeito, alimentos e me dediquei intensamente, eu amava aquela rotina. Nunca me dei bem em happy hours, festas de fim de ano e chegava a ficar roxa de tão vermelha quando alguém vinha falar comigo. Tinha vergonha, tinha medo, tinha traumas. Difícil saber quem estava rindo de mim e quem estava rindo comigo. Nunca me enganei com relação às pessoas, o problema é que até hoje eu demoro para captar suas intenções. Próximo aos dois anos de contrato de estágio que havia sido renovado quatro vezes, fui embora e virei secretária, o que foi traumático para mim…
 
Na faculdade eu era a mais velha do grupo de meninas, tinha completado trinta anos de idade e elas tinham cerca de vinte. Não preciso mencionar que me comportava como elas, o que também em um dado momento me feriu a alma. Percebi que estava errada, já haviam esgotado as disciplinas do hiperfoco e passei a zerar as notas… Era hora de me retirar e abandonar um ambiente que tanto amei.
No final das contas e tendo feito uma reflexão profunda percebo que me faltou direcionamento, tratamento e atenção.
 
                       
 
Vejo que Guilherme (meu filho) deve ser tratado como uma pessoa, nem infantil e nem adulta, mas com sua característica única e brilhante de ser. Deixo ele livre para ser quem ele é, gostar do que ele gosta e se desenvolver no seu próprio tempo. Ele tem sete anos, tem muito senso de responsabilidade, tem palavra, é preocupado com o próximo, gentil com as pessoas…. Ele também ama brincar de pular, de imitar gatos, de ser criança, muitas vezes mais criança do que o esperado para a idade.
 
A verdade é que todo ser humano é diferente. Agora imagine a pessoa que em sua natureza tem um cérebro que funciona fora dos padrões. A luta é grande, o preconceito existe, a exclusão também.
Não tenho a pretensão de criar um mundo ideal para o autismo, mas tenho profundamente o desejo de levar compaixão, amor e entendimento ao maior número de pessoas possível.
 
 
Não superestimule seu filho independentemente de ele ser autista ou não. Toda criança precisa de infância, da sua mente livre para criar, para relaxar. Me assusta o fato de terapeutas insistirem que nossos filhos não podem ter a mente ociosa nunca. Enchem de funções uma criança que está em fase de desenvolvimento. Tudo tem um limite, o excesso desgasta, cansa, torna improdutiva e insatisfeita a mente dos nossos pequenos guerreiros. Eles podem até apresentar inicialmente alguma estereotipia quando ociosos, porém precisam aprender a lidar com isso também e somente o tempo e o amor é que lhes poderá proporcionar o auto controle e o prazer pela vida. Pense nisso!
 
Kenya Diehl*
Blogueira, Escritora e Empresária
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