Por: Laura Martins
Fonte: http://cadeiravoadora.com.br/pelourinho-acessivel/

Promover acessibilidade quando se trata de patrimônio histórico tombado tem sido um desafio no Brasil. Mas o projeto Pelourinho Acessível, em Salvador, é a demonstração de que é possível. Vamos conhecer esse trabalho? Estive lá em setembro e trouxe muitas informações!

Estou em frente ao Cruzeiro de São Francisco. A Igreja de São Francisco está ao fundo. Circulando o cruzeiro e o largo, uma faixa nivelada permite que a cadeira de rodas circule sem trepidação.

Estou em frente ao Cruzeiro de São Francisco; ao fundo, está a Igreja e Convento de São Francisco. Circulando o cruzeiro e o largo, uma faixa nivelada permite que a cadeira de rodas circule sem trepidação. (Todas as fotos pertencem ao meu acervo, exceto quando indicado.)

Por Laura Martins

Em setembro, minhas férias me levaram mais uma vez até a Bahia, quando tive oportunidade de visitar novamente o Pelourinho. Vc sabia que, em 2013, foi inaugurada uma rota de acessibilidade nesta área, para que pessoas com deficiência também possam ter acesso a esse magnífico patrimônio histórico-artístico-cultural brasileiro? Neste post, vou dar atenção exatamente a esse ponto de interesse de Salvador, capital da Bahia. Falarei sobre o processo que levou à materialização desse sonho, compartilharei fotos e indicarei onde vc pode ir ao banheiro ou tomar um lanche, coisas muito básicas, mas nem sempre acessíveis, não é mesmo? Principalmente numa área histórica e tombada.

Como vc já sabe, porque leu aqui, nesta viagem fiquei hospedada no Iberostar Bahia. Durante a estadia, pude retornar à charmosa Vila da Praia do Forte, assunto do próximo post. E, acompanhada de Ida e Solange, fui também a Salvador, que conheci há cerca de 12 anos. Contratamos um motorista para fazer um tour pela orla e pelo centro histórico e tivemos uma riquíssima experiência. Mas, sem dúvida, o que mais me atraiu foi o projeto Pelourinho Acessível.

Pelourinho: de instrumento de tortura a cartão-postal

Sabe aqueles lugares que a gente não pode deixar de conhecer? Pois é: o Pelourinho se enquadra nessa categoria de incontornáveis.

Na época da escravidão, os escravos eram castigados nos pelourinhos, presentes em diversas cidades, como cicatriz de um passado que nos envergonha. Em Salvador, o local se transformou no rico conjunto histórico e arquitetônico do Pelourinho – integrante do centro histórico da cidade. Igrejas, construções barrocas, comércio, restaurantes e artesanato, além da música, tomaram conta da região, que vive em efervescência. Lá vc encontra também a sede do grupo Olodum, que enche as ladeiras com suas cores vivas e a inconfundível e contagiante percussão dos seus tambores.

O Pelourinho é Patrimônio Cultural da Humanidade, tombado pela Unesco em 1985. A região é geograficamente desfavorável a cadeirantes, devido às ladeiras. Mas quem disse que ela não poderia se tornar acessível pelo menos em parte, possibilitando às pessoas com mobilidade reduzida a oportunidade de entrar em contato com essa maravilha da construção humana? E isso foi feito.

Do alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado fotografei o Largo do Pelourinho. Na foto, vc pode observar a ladeira, os sobrados em estilo colonial, uma igreja barroca.

Do alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado fotografei o Largo do Pelourinho. Na foto, vc pode observar a ladeira, os sobrados em estilo colonial, uma igreja barroca.

Direito de acesso ao patrimônio

A execução da rota acessível no Pelô iniciou-se em abril de 2012, após inumeráveis reuniões para convencer o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a liberar as intervenções na área, e depois de reunir parcerias e fazer o planejamento. A luta contou com o empenho de pessoas muito especiais, que estavam na hora certa e no lugar certo, sem as quais não teria sido possível chegar a esse resultado. Entre essas pessoas estavam operários muito empenhados:

O trabalho destes operários, ao escolher cada uma das pedras, parecia muito mais destinado, como diz a canção popular, a ladrilhar ruas com pedrinhas de brilhante, que revesti-las com pedras ‘cabeça de nego’. Cada pedra foi cuidadosamente escolhida, observando a irregularidade da sua forma e a regularidade da superfície, de modo que, ao revestir o concreto ciclópico nas travessias, não causasse qualquer trepidação. Projeto Piloto de Acessibilidade: Centro Histórico de Salvador (pág. 44)

Na primeira etapa de implantação do projeto, ainda que não tenha sido possível garantir o acesso a todas as edificações existentes na rota, a intervenção assegurou o acesso àquelas de maior relevância para o interesse coletivo, tais como o Museu da Cidade, a Fundação Casa Jorge Amado e o Solar Ferrão. Além disso, a rota nos oferece condições de contemplar o conjunto arquitetônico e experienciar as características do ambiente que agregam valor histórico e cultural a este espaço.

E quais foram exatamente as intervenções que tornaram o Pelô mais próximo das pessoas com deficiência?

♦ Na rota acessível, foi promovido o alargamento da calçada em uma das laterais da rua. Ela passou de 0,60m para 1,50m de largura. Foi mantido o meio-fio existente e complementada a largura com concreto lavado. Isso tornou o trajeto seguro para cadeiras de rodas.

♦ Para cruzar a rua, foram construídas travessias com base em concreto ciclópico revestido pela pedra conhecida como “cabeça de nego”. Observe que foi um trabalho artesanal. A pedra original havia sido assentada sobre uma base de areia, o que provoca irregularidade na superfície (causando muita trepidação da cadeira de rodas). Os operários retiraram as pedras no local onde seria construída a faixa de travessia e a recolocaram, escolhendo as mais lisas e uniformes, de forma a evitar trepidação que comprometesse o deslocamento de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Não sei quanto a vcs, mas esse tipo de ação me emociona. Sabe por quê? Porque comprova que as coisas são possíveis quando há boa vontade.

♦ A passarela no Largo de São Francisco foi recuperada e nivelada.

♦ Foi construída uma escarrampa (rampa através da escada) na Fundação Casa de Jorge Amado 

Este mapa mostra as intervenções para construção de rotas de acessibilidade no Pelourinho. Foi retirado desta publicação.

Este mapa mostra a rota de acessibilidade no Pelourinho. Foi retirado desta publicação.

O calçamento das vias do Pelourinho foi feito com pedras denominadas "cabeça de nego", assentadas sobre areia. Elas são irregulares e causam muita trepidação.

O calçamento das vias do Pelourinho foi feito com pedras denominadas “cabeça de nego”, assentadas sobre areia. Elas são irregulares e causam muita trepidação.

Passarela nivelada, em que as pedras foram retiradas e posteriormente recolocadas sobre base de concreto.

No projeto Pelourinho Acessível, foram construídas passarelas niveladas, em que as pedras foram retiradas e posteriormente recolocadas sobre base de concreto.

O registro do processo de construção da Rota Acessível do Centro Histórico de Salvador foi apresentado em uma publicação instigante e abrangente, que não estava disponível on-line. Mas tive acesso a ela e a hospedei no meu Google Drive, para que fique acessível ao público. Clique aqui para baixar (precisei hospedar no Google Drive, porque a plataforma do blog não comporta um documento tão volumoso). A primeira parte consiste no registro das articulações necessárias à viabilização do projeto; a segunda parte trata da elaboração do projeto de acessibilidade; e a terceira parte apresenta o registro do processo de execução da obra. Não deixe de ler, se vc se interessa pelo assunto; é uma aula.

O projeto foi elaborado e coordenado pela Secretaria da Justiça Cidadania e Direitos Humanos em parceria com o Escritório de Referência do Centro Antigo e a Fundação Mário Leal Ferreira. Contou com apoio do Iphan, da Companhia de Desenvolvimento da Bahia – Conder – e da Secretaria de Cultura da Bahia através do Instituto do Patrimônio Histórico Cultural da Bahia – Ipac .

“é certo que não se pode desmerecer o valor testemunhal de um imóvel ou um conjunto arquitetônico, entretanto, o patrimônio não pode ser colocado acima dos direitos do cidadão.” Projeto Piloto de Acessibilidade: Centro Histórico de Salvador (pág. 24)

Sem nenhuma dúvida, trata-se de uma ação emblemática, porque rompe com o mito de que a promoção da acessibilidade não é compatível com a manutenção do patrimônio histórico tombado.

É preciso não esquecer de que, se as condições de circulação não oferecem autonomia e segurança à pessoa com deficiência, representam uma barreira ao seu direito de ir e vir e ao direto à cidade, o que nada mais é que um desrespeito não somente à pessoa como às leis vigentes.

A intervenção no Pelourinho foi inspirada em uma rota acessível existente em Olinda, Pernambuco. Esperamos que ambas inspirem outras cidades históricas brasileiras a assegurar ao cidadão com deficiência a possibilidade de usufruir dos espaços históricos.

Lamentavelmente, muitos ainda enxergam a acessibilidade como “concessão” ou “ato caritativo”, mas ela é fundamental e, por isso, um direito assegurado pela legislação. É necessário que nós, pessoas com deficiência, ousemos sair da invisibilidade para “invadir” os espaços e exigir que a lei seja cumprida, por mais desafiadora que seja a empreitada.

Agradecimento

Agradeço a Alexandre Baroni pela entrevista que me concedeu, a fim de que este post oferecesse detalhes do projeto. Ele esteve e está à frente da Superintendência dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Sudef – e colaborou ativamente para tornar realidade essa empreitada. Alexandre é cadeirante e ativista dos direitos das pessoas com deficiência. Conversamos longamente, para que ficasse mais claro para mim o processo que levou o Pelourinho a se tornar mais amigável com os cadeirantes. E então pude concluir que não foi nem um pouco simples, levando um ano somente para que a aprovação do projeto pelo Iphan fosse possível.

Por trás desse processo, havia uma equipe incansável, o que permitiu que a rota fosse inaugurada em dezembro de 2013, sem que a identidade visual do patrimônio sofresse danos.

Na pág. 47 da publicação sobre a Projeto Pelô Acessível, vc vê a obra de nivelamento da passarela no Largo de São Francisco. Na foto da esquerda, em cadeira de rodas, o superintendente dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Alexandre Baroni.

Na pág. 47 da publicação sobre o Projeto Pelô Acessível, vc vê a obra de requalificação da passarela no Largo de São Francisco. Na foto da esquerda, em cadeira de rodas, o superintendente dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Alexandre Baroni.

Roteiro da nossa visita

Pedimos ao motorista que nos deixasse no Terreiro de Jesus (veja o mapa acima). De lá, pela passarela acessível, feita pelo escritório da arquiteta Lina Bo Bardi e recuperada pela equipe do projeto Pelô Acessível, fomos até a exuberante Igreja e Convento de São Francisco de Assis.

Uma pessoa em cadeira de rodas consegue visitar toda a área que fica no térreo, porque há rampas interligando os ambientes. E há banheiro possível de ser usado; não é acessível, mas a porta é larga, e o espaço suficiente até para cadeiras maiores.

Estas fotos mostram o interior rico em ouro da Igreja de São Francisco de Assis, no Pelourinho.

Estas fotos mostram os painéis de azulejo do claustro e o impressionante interior rico em ouro da Igreja e Convento de São Francisco de Assis, no Pelourinho. Fotos com celular não são capazes de captar a beleza…

Após, tomamos um lanche delicioso no Cantinho da Casa, uma cafeteria ao lado do Cruzeiro de São Francisco, localizada dentro da livraria da Federação Espírita do Estado da Bahia. É possível entrar por uma rampa posicionada na porta, um pouco íngreme, e depois subir mais um trecho de rampa interna, para a qual vc necessitará de ajuda. Lá dentro, o sol escaldante cedeu lugar ao frescor, o burburinho foi substituído pelo sossego. Fomos atendidas pelas gentilíssimas Isa e Sabrina, que trazem a energia de aconchego ao local. Elas nos informaram que o prédio da Federação tem banheiro acessível. Fica a dica.

O Cantinho da Casa tem rampa, embora íngreme, e o prédio onde se localiza tem banheiro acessível.

Estou lanchando no delicioso Cantinho da Casa. Na segunda foto, vc pode observar a rampa. Após passar pela porta, tem outra mais curta e mais íngreme.

A seguir, descemos a rua Gregório de Matos. As amigas Ida e Solange estavam de scooter, e eu de cadeira manual. Desci tocando a cadeira, sem problemas e sem necessidade de ajuda; elas também.

Atravessamos a rua no local que dá acesso à Fundação Casa de Jorge Amado, e seguimos pela escarrampa. Sucesso total!

Descemos a Rua Gregório de Matos ao som contagiante da banda Swing do Pelô. Observe, do lado esquerdo, a calçada alargada.

Descemos a Rua Gregório de Matos ao som contagiante da banda Swing do Pelô. Observe, do lado esquerdo, a calçada alargada.

Casa de Olodum: loja oficial da banda e centro cultural. Não tem acesso para cadeirantes, mas dá pra entrar na loja com ajuda...

Casa do Olodum: loja oficial da banda e centro cultural. Não tem acesso para cadeirantes, mas dá pra entrar na loja com ajuda…

Atravessamos neste trecho para alcançar a rampa que dá acesso ao Museu da Cidade e à Fundação Casa de Jorge Amado.

Atravessamos neste trecho, mais nivelado e com meio-fio rebaixado, para alcançar a rampa que dá acesso ao Museu da Cidade e à Fundação Casa de Jorge Amado. Vc pode observá-la ao fundo, à esquerda.

A seguir, após admirar a bela paisagem formada pelas construções coloniais, retornamos pela Rua Alfredo de Brito, muito íngreme. As meninas tentaram me puxar ou empurrar com a scooter. Verificado o insucesso dessa empreitada, várias pessoas me ofereceram ajuda, incluindo estrangeiros. E foi empurrada que retornei até o Terreiro de Jesus.

O comércio da região é quase todo inacessível; há uma ou outra entrada plana. Em algumas lojas, com ajuda vc consegue vencer o degrau da entrada.

Solange, à esquerda, e Ida, à direita, foram minhas acompanhantes neste passeio. As duas estavam usando scooter.

Solange, à esquerda, e Ida, à direita, foram minhas acompanhantes neste passeio. As duas estavam usando scooter.

Observe Ida subindo a "escarrampa" que leva à Fundação Casa de Jorge Amado.

Observe Ida subindo a rampa que leva à Fundação Casa de Jorge Amado.

Estou no alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado.

Estou no alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado.

Sobre a segurança no Pelourinho, atualmente há muitas câmeras na parte mais movimentada, assim como muitas viaturas policiais. Por isso, é possível circular sem risco de ser roubado, mas nem por isso se descuide de seus itens pessoais. Na parte menos movimentada (os becos), não há câmeras nem policiais; evite se aventurar por lá.

Sugiro que reserve pelo menos 2 horas para conhecer a rota acessível sem pressa. Principalmente se quiser visitar a igreja e comprar artesanato nas lojinhas…

A seguir, fomos “a pé” até o Elevador Lacerda, numa rota que oferece algumas dificuldades para cadeirantes: há rebaixamentos de calçada muito íngremes e inseguros, e em alguns locais é preciso passar sobre um calçamento pontiagudo. Várias vezes fomos ajudadas.

O Elevador pode ser utilizado por pessoas com deficiência sem nenhum custo. A vista lá do alto é esplendorosa, mas praticamente inacessível a um cadeirante, pois o parapeito é alto. Quando estive no local pela primeira vez, eu ainda usava aparelho ortopédico e muletas, além da cadeira de rodas. Assim, pude entrar no Palácio Rio Branco (antigo Palácio do Governo, que não é acessível) e consegui fotos lindas, pois a vista que se tem de lá é incomparável. Abaixo, uma das fotos da época.

Foto obtida a partir do Palácio do Governo. É possível observar o Elevador Lacerda, à direita, e o Mercado Modelo, ao fundo.

Foto obtida a partir do Palácio do Governo. É possível observar o Elevador Lacerda, à direita, e o Mercado Modelo, ao fundo.

Após descer, tem-se acesso ao Mercado Modelo, que entrará em reforma. Não recomendo a visita: a entrada plana fica atrás do prédio e para chegar a ela o trajeto não é tão simples; o elevador interno está permanentemente com defeito, e o bar que serve ao local é uma bagunça, com preços estratosféricos. E, por fim, de modo geral não oferece artesanato de qualidade, nem itens da gastronomia local.

Pegamos novamente o carro, com nosso indefectível motorista, e fomos até a Igreja do Bonfim (aquela da escadaria que é lavada em janeiro), que também é acessível.

O retorno ao hotel levou cerca de uma hora, boa parte dela na belíssima orla de Salvador. Imperdível é pouco, concorda? Se vc não conhece, agende. Se conhece, retorne!

Nosso querido motorista, Sr. Florisvaldo.

Nosso querido motorista, Sr. Florisvaldo. Ao meu lado, nas respectivas scooters, Ida e Solange.

Para saber mais

Mobilidade e acessibilidade urbana | Iphan

Livro sobre as intervenções no Pelourinho (para baixar)

Salvador: as dicas do site Viaje na Viagem

Ida desce a rampa que dá acesso ao pátio central da Igreja de São Francisco.

Ida desce a rampa que dá acesso ao pátio central do claustro da Igreja de São Francisco.

Estou na Igreja de São Francisco, a que tem a maior quantidade de ouro no Brasil.

Estou na Igreja de São Francisco, a que tem a maior quantidade de ouro no Brasil.

Na minha primeira ida a Salvador, fui conhecer o Dique do Tororó, com suas encantadoras esculturas de orixás. Na foto, estou com minha mãe. Neste segunda ida, apenas passamos pelo local.

Na minha primeira ida a Salvador, fui conhecer o Dique do Tororó, com suas encantadoras esculturas de orixás. Na foto, estou com minha mãe. Nesta segunda ida, não descemos; apenas passamos pelo local.

Fonte: http://cadeiravoadora.com.br/pelourinho-acessivel/