Pesquisadores da Unesp de Botucatu e Bauru desenvolvem dois tipos de medicamentos para tratamento de feridas crônicas com um custo mais em conta para os pacientes

Rita de Cássia Cornélio – Divulgação
O sangue e seus derivados são processados para ser utilizado em uma pomada

Uma pomada produzida a partir do sangue humano e um selante de fibrina derivado de veneno de serpente estão sendo estudados por pesquisadores da Unesp de Botucatu e Bauru. Ambos querem colocar fim a um drama que atinge milhões de pessoas em todo o Brasil: possuir uma ferida que não cicatriza.

A ferida que vaza e produz mal cheiro é um item que causa a exclusão social de muitas pessoas e vem sendo estudada há anos. Medicamentos comerciais importados prometem curar, mas o tratamento é fora do orçamento da grande maioria dos pacientes. Para atender essas necessidades, o biocurativo e o selante que usam tecnologia brasileira surgem como alternativa mais acessível.

O biocurativo na verdade são curativos biológicos produzidos a partir do plasma fresco congelado e concentrado de plaquetas, obtidas a partir do sangue de doadores do Hemocentro de Botucatu. Com duas formas farmacêuticas: emulgel e laminar são indicados para o tratamento de feridas crônicas em todas as fases de processo de cicatrização.

A pesquisa é desenvolvida pela doutora em farmácia Rosana Rossi Ferreira do Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Ciências da Unesp de Bauru em conjunto com a professora doutora e médica da Faculdade de Medicina de Botucatu Elenice Deffune. “É uma pesquisa translacional na área de biotecnologia”, explica a farmacêutica.

O biocurativo é indicado para as úlceras venosas, úlceras arteriais, úlceras por pressão, pé diabético e deiscência cirúrgica. Recentemente, a Agência Unesp de Inovação fez o pedido de patente junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). “Após o registro da patente, vamos partir para uma nova fase da pesquisa”, comenta a farmacêutica.

O tratamento de úlceras venosas com o selante de fibrina – derivado de veneno de serpente – é uma pesquisa desenvolvida desde 1989 pelo Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da (Cevap) da Unesp. É um produto brasileiro e seu custo permitirá o uso na rotina dos hospitais, além de ser mais acessível pela população menos favorecida.

O selante é constituído de fibrinogênio extraído de grandes animais e de uma enzima obtida a partir de veneno de serpente. A não utilização de sangue humano na sua composição, segundo o estudo, evita a transmissão das doenças infecciosas. O produto já foi experimentado em animais e seres humanos.

Em 2009, os pesquisadores trataram 25 pacientes com úlceras crônicas e concluíram: o selante é adequado para tratamento de úlceras de perna, é mais econômico que o disponibilizado no mercado. Apresenta ainda as seguintes vantagens: facilidade de aplicação, tendência para o preparo do leito e diminuição da dor. O emprego semanal, durante pelo menos oito semanas, poderá melhorar o processo da cicatrização e aumentar os índices de cura.

A pesquisa entra agora em uma fase de testes humanos com a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para registro do produto. Serão selecionados 40 pacientes com úlcera venosa crônica nas pernas para participar desta etapa. O projeto de pesquisa clínica e tecnológico multi-institucional, engloba oito centros brasileiros de pesquisa clínica.

‘Resíduo’ de sangue é testado em cicatrizante

Material biológico descartado do Hemocentro de Botucatu passou a ser pesquisado para servir na produção de pomada para biocurativo

Reaproveitar o descarte dos derivados do sangue do Hemocentro do Hospital de Clínicas da Unesp de Botucatu foi uma busca perseguida pela médica, doutora e professora de hematologia Elenice Deffune desde 2001. A ideia surgiu quando a professora era da direção do hemocentro e não se conformava em mandar para o descarte o material biológico.

“Esse material biológico é nobre em todos os sentidos. Como material biológico porque é o patrimônio genético da humanidade. Nobre porque foi doado voluntariamente por uma pessoa pensando em beneficiar a outra.”

Ela explica que quando se separa o sangue nos processos de hemoterapia produz a parte vermelha e a branca (plasma). “O plasma legalmente produzido, caracterizado e controlado é liberado e congelado a menos 30 a 80 graus para que se possa usar o sangue em transfusões. Mesmo usando todo o critério no preparo, processamento e no congelamento do plasma, os fatores de coagulação decrescem ao longo do tempo. Legalmente só posso usar na veia de um paciente durante 12 meses.”

Após esse período, o plasma deve ser enviado para a indústria de hemoderivados para fazer medicamentos como fator oito dentre outros ou tem que ser descartado. “Se transforma em resíduos biológicos, resíduo de serviço de saúde. Em 2001, o Brasil não tinha ainda uma sistemática e um contrato com empresas internacionais de hemoderivados para recuperar este plasma e mandar para a fabricação de outros medicamentos de alto custo.”

A médica confessa que se sentia mal em encaminhar para o descarte o material. “Em nosso serviço iam anualmente cerca de três mil unidades. O que é muito. Como a Vigilância Sanitária proíbe a permanência de material vencido na área assistencial. Nós compramos freezer  para pesquisa. Transferia esse material do estoque da assistência transfusional para o estoque da pesquisa.”

Rico em proteínas

Em áreas físicas totalmente separadas, os pesquisadores começaram a analisar todos os fatores que tinham diminuído e que por isso não poderiam mais ser usados e os fatores preservados. “Com essa análise muito grande de unidades, foram pesquisados cinco mil unidades na época, nós vimos que essa unidade estava estéril. Que tinha uma grande quantidade de proteínas cicatrizantes e perdido sim alguns fatores de coagulação, conforme previa a legislação.”

A médica explica que o ideal para que o sangue seja usado para a transfusão e ter um bom resultado de parar sangramento é no máximo em 12 meses. “Como não tínhamos a indústria de hemoderivados fomos procurar avaliar em que situação aquelas  proteínas, rica naquele material poderia ser utilizado.  Identificamos a proposta de uso em cicatrização com a produção de curativo bioativo. Surgiu então o gel de plaquetas e da cola de fibrina de uso externo integralmente produzido com proteínas humanas. Nenhum componente animal como a maioria dos outros produtos disponíveis no mercado.”

O diferencial desse produto é ter proteína cicatriciais em concentrações biológica que foram doadas por indivíduos que se encontravam plenamente saudáveis. “Isso faz com que a aplicação dessas proteínas, das diferentes formas, façam com que a lesão que se encontra desorganizada, sem capacidade de regenerar, use essas proteínas em plena capacidade de regeneração para organizar a lesão.”

A pesquisadora enfatiza que o custo é outro item a ser considerado. “O nosso produto tem  fator de crescimento que os grupos farmacológicos têm. Existem produtos que tem esses hormônios de crescimento que o nosso tem, mas custam verdadeiras fortunas. Os produtos comumente comercializados não têm fator de crescimento. Ele fica mais barato porque é produzido com uma matéria doada gratuitamente. É lógico que quando esse produto for para o estágio inicial vai ter agregado a embalagem, bula, propaganda.”

Técnica de manipulação permite a criação de curativos bioativos

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Pesquisadora Rosana Rossi Ferreira diz que já foram feitos com a pomada vários testes em animais

Uma técnica de manipulação farmacêutica que utiliza plasma, hemácias, plaquetas além de outras substâncias possibilitou a criação dos curativos bioativos. “Meu grupo de pesquisa fica no Hemocentro da Faculdade de Medicina de Botucatu. Produzimos um gel em forma de pomada que a gente faz a partir de hemocomponentes oriundos do hemocentro. Os excedentes da produção do hemocentro são plasma e plaquetas. Aquilo que não vai para a transfusão iria para o descarte, o nosso laboratório recolhe reprocessa, testa a qualidade e incorpora como um princípio ativo num gel farmacêutico”, explica a pesquisadora e farmacêutica Rosana Rossi Ferreira, docente da Unesp de Bauru.

Esses produtos estimulam o organismo a produzir aquilo que ele já produz, mas que naquela pessoa está com problemas. “Na prática isso significa que ele tem vários componentes que ajudam na cicatrização tecidual, quando a pele está lesada por algum problema. Os problemas mais comuns são: úlceras venosas, pessoas com diabetes e têm dificuldades de cicatrização. A hipertensão é outro agravante que faz com que essas feridas, por algum motivo, patologias existentes, não fechem.”

Ela explica que há casos de feridas com mais de 20 anos. “São feridas crônicas. Que não cicatrizam ou então começam a fechar e abre de novo. Essas pomadas auxiliam nesse sentido. Outra aplicação que tem apresentado sucesso são nas  escaras de pessoas que ficam na cama muito tempo. São úlceras de pressão. É o corpo contra a cama que gera a ferida.”

Segundo ela, já foram feitos vários testes em animais. “Começamos em 2004  isso tem mais de 10 anos. Dos testes em animais passamos para humanos e, agora nessa fase, fizemos o pedido da patente para a Unesp. Tudo o que foi testado até hoje foi gratuito. Somos um laboratório de pesquisa e desenvolvimento.”

O que são medicamentos biofibrin?

O gel de plaquetas e gel mix são produzidos a partir de dois componentes do sangue, o plasma e as plaquetas. Destinam-se a tratar feridas de pele de difícil tratamento.

O que são feridas crônicas

São feridas abertas há mais de seis semanas e que com medicamentos comercializados não têm um processo cicatricial adequado.

Pacientes

Em caráter experimental foram atendidos pacientes de Botucatu, São Paulo, Brotas, Uberada (MG) e de outros Estados, como o Tocantins.

Derivado de veneno de cobra é um selante

Bioproduto auxilia na cicatrização de feridas e foi criado a partir da mistura de uma enzima do veneno da cascavel com fibrinogênio de sangue de búfalos

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Enzima extraída do veneno da cascavel está sendo pesquisada em cicatrizante de feridas

O selante de fibrina foi criado a partir da mistura de uma enzima extraída do veneno da cascavel com fibrinogênio de sangue de búfalos. Foi desenvolvido pelo Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap) da Faculdade de Medicina de Botucatu para auxiliar na cicatrização de feridas.

O diretor do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos e responsável pela produção do selante, professor Rui Seabra Ferreira Filho, enfatiza que o selante de fibrina foi desenvolvido em substituição ao sangue humano, usado no produto comercial. “Os selantes comerciais atuais são todos importados. Nós desenvolvemos um com tecnologia 100% nacional.”

Para ele, isto é sinônimo de domínio. “Significa que temos o domínio de uma tecnologia até então importada o que gera produtos caros, inacessíveis aos pacientes. Uma dose de selante comercial hoje, custa em torno de US$ 140. O nosso é bem abaixo disso. Os nossos estudos exigem de uma a três doses semanalmente durante três meses, dependendo do tamanho da ferida. Algumas são maiores e exigem mais doses.”

O bioproduto já foi testado em paciente humanos, porém em estudos acadêmicos. “Estamos na fase dos estudos com autorização da Anvisa para registro do produto. A partir do registro do produto, ele poderá ser comercializado. Após a primeira fase de estudos com o selante de fibrina derivado de veneno de serpente, a Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp, por meio de sua Unidade de Pesquisa Clínica (Upeclin) dará início a segunda fase. Serão selecionadas 40 pessoas com úlcera venosa crônica nas pernas para participar desta etapa.”

Ele explica que um dos diferenciais é que o selante de fibrina comercial é de origem humana e não estimulam a cicatrização tão bem como o de origem animal. “O nosso produto está mais apto para esse tipo de curativo. O estudo será avaliado pela Anvisa no quesito segurança do produto no processo de cicatrização de úlceras venosas. Eles vão avaliar se realmente ele é eficaz. Para isso precisaria de número maior de pacientes que agora vão ser 60 a 80 pacientes. Isso precisa ser feito em uma unidade de pesquisa clínica com critérios mais rígidos, apesar de termos testado.”

Serão realizados curativos semanais com aplicação do produto, que é semelhante a um gel, sobre a ferida e a bota de Unna. Nos estudos anteriores o selante demonstrou ser um produto seguro. Na última fase, houve cicatrização em 38,8% das úlceras e melhora em 33,3%, totalizando melhora significativa em 72,1% dos casos.

Ao contrário do que muitos pensam, as úlceras não são “privilégios” dos idosos, enfatiza o pesquisador. “São milhares de brasileiros que sofrem com úlceras de difícil cicatrização. É difícil porque tem os agravantes. Pacientes com diabetes, com problemas circulatório, vários agravantes que dificultam a cicatrização das úlceras. Normalmente causa um problema social. Muitos pacientes de origem muito humilde não têm condições de trocar o curativo semanalmente. Essas úlceras vazam, cheiram mal e as pessoas são afastadas do convívio familiar. Não são só idosos. Tem jovens também. Nada relacionado a idade.”

Serviços:

Interessados em participar como voluntário desta fase da pesquisa deverão ligar para o telefone (14) 3880-1663. O horário de atendimento da unidade é das 8h às 17h.

Fonte: http://www.jcnet.com.br/